Chegamos ao Porto pela Ponte do Infante, contornamos o Jardim de São Lázaro e, mesmo antes de alcançar a Faculdade de Belas Artes da UP, viramos à direita. Por uma rua mais estreita, conduzimos em direção à Praça da Alegria. A este ponto, o ritmo da vida parece mudar drasticamente. Deixamos para trás a azáfama da grande cidade, a gentrificação agressiva e os bistrôs. Passamos por estabelecimentos pitorescos, por esplanadas em que se faz o balanço do trabalho, ainda de roupa salpicada. O Douro está logo ali, ao fundo da rua. Encontramos o Professor Mário Barros no Miradouro das Fontainhas, bem no coração “das suas memórias”. Olhando em volta, partilha connosco um mapa sentimental: “isto tudo era o nosso campo de futebol. Jogávamos descalços, com os sapatos a fazer de postes das balizas. Uma vez um polícia apanhou-me, a mim e à minha bola. Se me levasse para a esquadra, os meus pais teriam de pagar uma multa de 25 tostões. O polícia segurava a minha mão com tal força, que comecei a sentir-me incomodado, dei-lhe uma trincadela e fugi”.
Mário cresceu no seio de uma família humilde, mas nunca lhe faltou nada: “os meus pais tiveram sempre o máximo cuidado e recebi efetivamente uma boa educação, com os valores mais corretos e desejáveis”. Enquanto se lançavam as bases para uma formação humanista, o basquetebol surgiu na sua vida por influência de amigos. “Quando apareci a primeira vez no Parque das Camélias, posso dizer que já jogava basquetebol. Costumava improvisar cestos nos portões, com círculos em giz, e cheguei a partir um vidro na entrada de minha casa, fazendo um buraco para meter lá a bola. Claro que os meus pais nunca souberam.” Chega ao Vasco da Gama com 12 anos e é integrado no minibasket: “sim, dão o seu surgimento em Portugal muito mais tarde, mas neste clube, de que sou o sócio nº1, nessa altura já havia minibasket”.
A formação no Parque das Camélias não podia ter sido mais risonha e, aos 18 anos, depois de já ter sido considerado o melhor júnior da cidade do Porto, é integrado na equipa sénior. Na iminência de ser convocado para o polo Norte da Seleção Nacional, uma deslocação ao Barreiro acabou por apressar a vocação. Em jogo a contar para a 1ª divisão, atual liga, sofre uma fratura dupla do menisco, lesão que à época era sinónimo de uma complicada e longa recuperação. “Fui operado a um joelho, mas só descobriram mais tarde a fratura no outro. Andei a jogar com ligaduras elásticas muito apertadas nas pernas. Só me movimentava verticalmente, corria para a frente. Lateralmente estava muito condicionado [risos]. Decidi que não podia continuar assim. Voltei a ser operado e parei.”
A apetência para treinar, sobretudo os mais novos, esteve sempre lá. Com 21 anos, já tinha ajudado o Vasco da Gama a conquistar 3 títulos nacionais de formação: “quando comecei a treinar, e isso durou bastante tempo, éramos autodidatas, praticamente não havia ações de formação. Até ao 25 de abril foi assim, e nós tínhamos de ir buscar lá fora o que não encontrávamos cá dentro. Eu tinha a referência de várias editoras norte-americanas. O interesse surgia pelo título do livro, a única informação disponível. Sempre que havia algo que me parecia útil, mandava vir. Fazia uma remessa em dinheiro e eles enviavam os livros. Não só sobre basquetebol, também comprei muita literatura francesa, por exemplo. A formação orientada, essa, começou verdadeiramente no 25 de abril. Nessa altura tivemos também a felicidade de contar com uma geração muito qualificada de professores de educação física, na sua maioria formados em Lisboa. Nesse período surgem também pessoas com um saber muito avançado, como o Prof. Teotónio Lima ou o Prof. Jorge Araújo. Mas o 25 de abril foi importante em muita coisa.”
“Eu tive uma educação política muito curiosa, e só mais tarde percebi que estava a ser educado politicamente. Começou com um sapateiro, que era meu vizinho e vivia no rés-do-chão. Mais tarde descobri que era comunista, ensinou-me bastante. Com 18 anos, entrei numa companhia de seguros, a Tranquilidade. Trabalhei lá durante 10 anos, período em que sofri influência de colegas, malta de esquerda, alguns deles com histórias muito interessantes, como o José Henriques da Silva, que tinha o pai no Comité Central do Partido e que chegou a ser preso. Vivíamos com muito medo. Quando treinava os seniores do FC Porto, fazíamos muitas deslocações à Galiza. Certa vez esqueci-me de levar a minha caderneta militar. Quando cheguei à fronteira, não me deixaram passar sem isso e só me deram uma alternativa: “o senhor que ligue à sua esposa e ela que vá mostrar a caderneta à PIDE.” A minha esposa tremia como varas verdes. Eu vivi 37 anos de ditadura e sei o que isso é. Muito dos meus atletas foram recrutados para a guerra e vinham sempre despedir-se de mim. Custava, custava bastante. Filhos de gente importante não iam para a guerra, sabe. Quando eu fui à inspeção era magrito, mas saudável. Éramos 40 e tal candidatos e passaram 4 ou 5. Um ou dois anos depois, passavam 36 ou 37.”
Este período coincide com os anos mais intensos da Guerra Colonial, e o desporto não ficou indiferente à escalada. Na época 1962/63, num esforço para manter a unidade nacional, o Estado Novo renomeia o Campeonato Nacional de Basquetebol, que se passa a chamar Campeonato Metropolitano. Num novo formato, o campeão nacional era decidido entre as melhores equipas portuguesas, angolanas e moçambicanas. “Tenho uma boa memória do Campeonato Metropolitano. Eu era secretário técnico do FC Porto no tempo do Dale Dover e conquistámos o título. Lembro-me daquelas equipas muito boas de Lourenço Marques que, no fundo, sustentaram o basquetebol nacional com muitos jogadores retornados. O desporto envolve competências que as outras áreas não têm. O Porto era atrativo e esses atletas retornados adaptaram-se muito bem. Dois exemplos que treinei: o Rui Chumbo, que passou pela Ovarense, e o Júlio Magalhães.”
“Eu trabalhava na banca, era gerente bancário: tinha as chaves, abria o banco e tinha o segredo do cofre. No 25 de abril, logo ao entrar, soube da notícia e recebi ordens superiores para fechar o banco e ir embora. Nesse dia tive uma pega com um dirigente sindical, que me telefonou a dizer que abandonasse o banco e entregasse a chave a alguém. Tudo o que estava a acontecer não alterava a minha condição de funcionário, não é? O 25 de abril abriu-nos o caminho para a liberdade de expressão, para a liberdade cultural, religiosa. A democracia, a descolonização. Talvez tenha faltado o outro D, o da promessa de desenvolvimento”.
No desporto português, o impacto da revolução é praticamente imediato. Pouco tempo depois, é criado o Instituto Nacional do Desporto, que concentrava em si um projeto de formação orientada pioneiro no país. O Professor Mário Barros frequenta todas as ações de formação do IND, concluindo-as sempre com nota máxima. “Preparar o processo de treino implica muitas vezes ir para além das áreas desportivas. Disciplinas como a pedagogia, a psicologia e a metodologia foram sempre centrais para mim. Alguns dos livros que tenho na minha biblioteca, mesmo com quase 60 anos, mantêm-se muito atuais. Prova disso são os métodos arcaicos de muitos treinadores no ativo. Senti sempre que isso me deu alguma vantagem a lidar com a malta jovem. Por exemplo, recordo um ano em que tinha a possibilidade de ganhar em simultâneo o campeonato nacional de juvenis e de juniores. A um sábado, depois de duas vitórias com os juvenis, deixei a equipa com um seccionista. O jogo decisivo seria no dia seguinte, domingo. Este senhor levou-os para a pensão e para o jantar, enquanto eu fiquei a observar o outro jogo de juvenis. Quando cheguei à pensão, verifiquei que as coisas não estavam bem. Os miúdos estavam eufóricos com as vitórias e o seccionista consentira que bebessem. Eles não estavam em condições e, no dia seguinte, não se mexiam. Depois desse episódio, e de ter perdido assim o campeonato, o meu discurso motivacional para os juniores foi outro. Foi de tal forma emotivo, que acabei a chorar.”
Ao longo da nossa conversa, o Prof. Mário Barros nunca deixa de referir as pessoas que sempre o acompanharam nos diferentes projetos que assumiu. Entre as suas memórias, há um lugar especial para uma classe muito particular. Depois de décadas nos relvados e nos pavilhões, era comum que massagistas reformados passassem a acompanhar os escalões de formação dos clubes, ora porque desejavam manter-se ligados ao desporto por mais tempo, ora pelo seu voluntarismo, que ficava muito em conta para as entidades desportivas. São precisamente estas pessoas que transmitem a mística dos emblemas. São os contadores de histórias que dentro de uma instituição dão sentido à passagem do tempo. “No Porto, a nossa companhia eram sempre os massagistas reformados. O que é curioso é que esses massagistas tinham um saber de experiência feito que os outros não tinham. Eu sempre estive emocionalmente ligado a essa gente. Gente com idade, gente que eu mimava bastante. Um desses massagistas, o Sr. Joaquim Lopes, ou Lopinhos, era muito meu amigo. Um dia veio ter comigo antes de um jogo com uma caixinha de Flandres nas mãos, daquelas em que se guardam os rebuçados para a tosse. Diz-me ele: “Ó Prof. Mário Barros, tenho aqui umas pastilhas, se me der autorização queria dá-las aos miúdos.” Eu respondi: “Ó Lopes, tenha paciência! Drogas não, não consinto!”. “Mas isto não lhes faz mal, Professor”, insistia comigo. Andou naquilo vários dias, até que uma vez perdi a paciência: “Porra, Lopes, não me chateie mais com isso!” E ele tomou estas minhas palavras como uma autorização. Sem que eu soubesse, distribuiu as pastilhas pelos miúdos. O meu jogador mais alto, o Fernando Calvário, tinha 1,88 metros, e o da outra equipa tinha 2 metros e tal. Nunca tive jogadores altos, foi sempre um problema. Bom, bola ao ar. O meu atleta ganha a bola e eu fico a olhar para aquilo: “bem, o que é que se passa aqui.”. Era efeito placebo, pastilhas de farinha. Talvez deva esse campeonato ao Lopes.”
Há muitas histórias que não cabem nesta peça. Numa carreira de treinador com cerca de 70 anos, quase tantos como os da sua vida, o Prof. Mário Barros ganhou tudo o que havia para ganhar. Trabalhando quase sempre com escalões de formação, é um exemplo de estudo e pesquisa da modalidade. Esta dimensão da sua carreira – cosmopolita, humanista, voltada para o futuro – torna-se ainda mais impressionante se passarmos em revista o contexto social e político do início do seu percurso. Se tantas vezes ainda lamentamos o regime insular que envolve o basquetebol português, conseguiremos verdadeiramente imaginar a proeza que é insistir numa visão multidisciplinar e multidimensional do treinador em plena ditadura? Dos “dólares bem empregues em livros americanos” ao autodidatismo por necessidade: no fim da nossa conversa, o Prof. Mário Barros dizia-me que procurava fazer aos outros aquilo que fizeram por si: partilhar conhecimentos, ajudar quem está a começar. “Para os miúdos, um treinador é muitas vezes o confidente que não encontram no pai ou na mãe. Ajudei muitos, por exemplo, a escapar ao flagelo da droga. Mantive-os ocupados, eles gostavam de treinar comigo.” A sua disponibilidade quase desarmante para ensinar, aprender e ouvir em simultâneo vale-lhe a admiração de todos e todas que se cruzaram consigo. Muitos dos seus pupilos – orgulhosamente seus para sempre – não descansaram até que o Prof. Mário Barros fosse reconhecido pelo seu impacto no desporto e na juventude. Por isso, em 2017, Mário viveu aquele que considera ser o ponto alto da sua carreira: a condecoração com a Medalha de Mérito Desportivo da Cidade do Porto. Neste pequeno círculo luminoso concentram-se muitos nomes e conquistas. Mas, aos 86 anos, a sua carreira está longe de terminar. Sendo ainda detentor do recorde de mais títulos nacionais conquistados por um treinador, não deixa, contudo, de acumular projetos nas suas mãos. Além da presença assídua em clinics e ações de formação, planeia ainda passar para livro os conhecimentos que o distinguiram ao longo das 7 décadas ligado à modalidade.
Subimos a Rua da Praça da Alegria enquanto o Prof. Mário vai apontando para algumas fachadas, comentando: “eu andei nesta escola, antigamente isto era uma padaria”. Seguimos assim até chegar ao nº 74: “foi nesta casa que cresci”. No dia em que celebramos os 50 anos do 25 de abril de 1974, esta é mais do que uma bonita coincidência. É a porta para um futuro que se anunciava mais livre, justo e progressista. É o destino a pregar-nos partidas, a mostrar-nos o início de um caminho: para Portugal e para o basquetebol português.
“Os canadianos”, diz-nos o Prof. Mário, “definem várias etapas na formação dos jogadores. A primeira delas é aprender a treinar. Em Lousada, alinhei os miúdos um por um e ensinei-os a falar com o treinador.” Talvez possamos inverter a lógica e torná-la mais nossa: precisamos de aprender a ouvir. Comecemos pelas histórias do nº74 das Fontainhas.