Estamos em agosto e, no céu, o sol ilumina o areal dourado da Póvoa de Varzim. A estrada nacional 13 parece não ter ainda esquecido as rusgas de São Pedro, que no mês de julho celebram o vigor com que o mar entra na vida da comunidade. Para chegar ao Pavilhão Linhares de Castro, basta seguir a romaria dos banhistas nortenhos. Entramos na fila de carros e, já quase a chegar à marginal, cruzamo-nos com a casa do Clube Desportivo da Póvoa. Luís Cruz, adepto do emblema da Liga Betclic, começa por nos ensinar uma distinção essencial: “quando queremos falar do CDP, dizemos o Desportivo, e não o Póvoa, que é o futebol.” Assim será a partir daqui.
O Desportivo prepara-se para cumprir a sua terceira temporada consecutiva no principal escalão do basquetebol português. Ao longo deste período, jornada a jornada, a massa adepta do clube tem-se tornado uma referência na modalidade: “Os jogadores norte-americanos chegam cá e só nos perguntam: como é que uma cidade tão pequena coloca tanta gente nas bancadas?”. As palavras são de Vítor Ramos, técnico de equipamentos da equipa sénior do CDP e um exemplo vivo de dedicação ao clube. Com apenas 18 anos, o também estudante de eletrotecnia leva já 13 épocas no Desportivo, 10 como atleta e 3 no staff: “a ligação surge aos 4 anos. A minha irmã jogava, a minha mãe já tinha jogado”. Dentro de campo, representa o Desportivo até ao escalão sub15, e pelo meio chega a partilhar a quadra com Jorge Rodrigues ou Thomas Sampaio. A seguir à pandemia, é convidado para assumir a função de técnico de equipamentos, treinando ainda uma das equipas do Minibasquete do CDP: “disponibilizei-me sempre para ajudar nos jogos da formação, para apitar, fazer mesa. Na final da Proliga, estava a fazer a estatística”.
O Vítor vai repetindo gestos carregados de mística, próprios de figuras que se eternizam na história dos clubes. Não fossem os estudos e até nos esquecíamos da sua idade: “quando jogamos nas ilhas, por exemplo… já assisti a muitas aulas no aeroporto, já fiz diretas em deslocações da equipa para acabar trabalhos do curso. Tenho de tentar conciliar tudo, porque a preparação acaba por ser mais intensa nos dias anteriores aos jogos. Saio das aulas e passo por aqui à hora de almoço para tratar de tudo, e à tarde volto para a escola. Como jogamos sempre ao sábado tenho de deixar tudo pronto nessa altura, porque também sou jovem e gosto de sair à sexta.”
Comida, água, toalhas individuais, toalhas de banho, equipamento principal, equipamento alternativo, camisolas de aquecimento, meias. Se os domínios do Vítor já não são pequenos, há sempre pedidos especiais a que é preciso atender: “no meu primeiro ano, com o Kapelan, tínhamos uma série de rituais. Eu levava sempre uma mala só para ele, com uma bola medicinal, três pares de sapatilhas, as fitas de aquecimento e o rolo dos músculos. Era sempre o primeiro a entrar no campo, e por isso tinha de ser o primeiro a receber as coisas.” O Vítor confessa-nos que os jogos fora são sempre mais complicados, porque chegam todos ao mesmo tempo. Mas o cenário parece cada vez mais favorável: “no primeiro ano estava sozinho, agora tenho dois ajudantes: o meu irmão gémeo e um atleta sub16 da formação. Nos descontos de tempo garantem a distribuição das águas e das toalhas. Nos jogos, por exemplo, dedico-me mais aos equipamentos e eles às camisolas de aquecimento.”
O Vítor faz parte do Desportivo desde o escalão sub8. Ao longo destes 13 anos, o seu posto foi mudando: do campo para a bancada, da bancada para o banco. E é claro que neste percurso regista diferenças fundamentais: “na bancada vês o jogo todo. No banco não consigo ver quase nada, se calhar só um bocado do 4º período, e às vezes nem isso, com todos os descontos de tempo. Já estou habituado a rever sempre os jogos de madrugada, em casa. Naquele dia incrível, em que ganhámos ao Benfica, tive de sair do banco. Estava a ficar super nervoso e fui para trás da tabela preparar o final do jogo.”
Para o futuro há vários objetivos em cima da mesa: “a nível pessoal, quero evoluir a forma como disponho os equipamentos. O meu objetivo é oferecer o maior conforto possível aos jogadores, deixar tudo pronto e à sua maneira, ajudá-los a relaxar.” À modalidade “desejo mais investimento, que as pessoas não se fiquem pelo futebol. É muito diferente ver um jogo em casa e no pavilhão.”
Se há dia de boas memórias no CDP é o da vitória frente ao Benfica, e o Luís não foge à regra: “ganhar ao Benfica encheu-me as medidas, foi um jogo emocionante. Em casa o Desportivo é uma equipa forte, difícil. Eles tremeram, e a meio do terceiro período já estava taco-a-taco. Começámos a empolgar-nos naquela fase em que ou perdemos ou descolamos. Foi sofrer até ao fim, com um último cesto no penúltimo segundo que levantou dúvidas e forçou uma ida ao “VAR”. No final foi a loucura, não cai a cobertura por sorte.”
A narração apaixonada reflete a “união de uma comunidade piscatória orgulhosa de si. Há uma rivalidade grande nas Rusgas de São Pedro entre o Bairro Norte o Bairro Sul, mas no fundo andamos todos ao mesmo. Na Póvoa toda a gente se conhece. Se não é do Varzim é do basket, se não é do trabalho é de outro sítio. E essa união nota-se dentro de campo, carregamos isso connosco”. O Luís começou por jogar basket no Póvoa de Varzim, nos anos 90, período em que o clube aposta noutras modalidades. “Os treinos eram no meu liceu, e decidi entrar. Depois mudei-me para o Desportivo porque o Varzim só tinha formação de basket até aos juvenis. Joguei no Desportivo pouco tempo, mas conheci aqui a minha mulher, que também jogava e chegou a ser a atleta do ano em ’91”. Conta-nos que pelo CDP já alinha a terceira geração de miúdos, guiados por pais e avós que no passado representaram o emblema: “as minhas duas filhas e o meu filho também já jogaram cá, e agora vamos sempre os cinco ao pavilhão. Sempre no meio-campo, nos lugares de cima, porque estamos à mesma distância das duas tabelas [risos].
Desde a subida à Liga Betclic que o pavilhão tem outra dinâmica. Para assegurar o lugar de sempre — e assumindo que o encontro tem início às 15h — “às 14h20 já temos de estar a estacionar. Trabalho por turnos, e por ano não consigo vir a 2 ou 3 jogos, mas tento sempre mudar de horário para estar presente.” À vitória frente ao Benfica juntam-se mais boas memórias: “a Taça na Quinta dos Lombos, a final com o Sangalhos. A assiduidade constrói-se e é reflexo de uma mística que começa no próprio plantel: “Somos a equipa sénior com mais elementos da formação integrados. Na época passada, tínhamos 6 ou 7. Podem não ser o cinco base, mas contribuem com minutos importantes e são uma referência fundamental para os miúdos que estão agora a começar, que assim sabem que podem vir a jogar nesta equipa e na maior liga do país. Transmite-se desta forma a mística da formação, e quem chega deixa-se levar por esse fio condutor.”
Numa altura em os primeiros reforços do Desportivo para a época 23/24 começam a ser anunciados, o ambiente parece ser de otimismo, ainda que para este adepto poveiro o objetivo continue a ser a manutenção: “Sim, vem aí o Gonçalo Delgado, o Filip. São reforços importantes. Desde que nos mantenhamos fico feliz.” Na época passada, o CDP despediu-se de duas das suas grandes referências dos últimos anos. Costumamos dizer que jogadores com este perfil se confundem com a própria história do clube, tanto pelo percurso que ajudam a desenhar como pela transição marcada pelo fim das suas carreiras. Falamos, claro está, de Nuno Oliveira e de Eduardo Coelho: “São os dois cinco estrelas, são o expoente máximo da formação. Dois jogadores que chegaram longe, que saltaram do CDP numa altura em que estávamos numa posição diferente. Este sonho do Sérgio e do Ricardo acabou por se concretizar: já que temos projeto para voar mais alto, por que não pensar no regresso dos nossos, dos da casa? Vieram, fizemos uma equipa bonita, chegámos ao topo e ficámos no topo.”
O apelo final mantém-se: “Se há pessoas que vêem NBA em casa, porque é que não vêm ver o CDP? É preciso apoiar o clube da terra.”
Acredita-se que na Fonte de Balasar, no município da Póvoa de Varzim, haveria uma pedra com uma pegada de São Pedro. Quando a retiraram, a fonte secou e não brotou mais água. A corrente só voltou depois de terem devolvido a pedra à fonte. Assim estão as gentes poveiras para o Desportivo: um vulto constante que faz correr a sua história.