Os Dias Mais Felizes

Basquetebol em Oliveira de Azeméis

Sábado de manhã em Oliveira de Azeméis. Na lavandaria, penduram-se os equipamentos principais e alternativos, afazeres de uma semana com dois jogos fora de casa. No espaço de três dias, em Lisboa, a Oliveirense bateu o SL Benfica por duas ocasiões, em encontros a contar para a Liga Betclic e para a Taça Hugo dos Santos. Wesley Washpun é o homem do momento, com duas prestações determinantes frente aos encarnados. A correria do minibasquete vai temperando um dia de sorrisos e otimismo, intercalados com a história de dedicação que o Bernardo nos começa por contar.

“Fui sempre aquele rapaz que estava em todos os jogos do clube, fosse em que modalidade fosse. Com 9 anos, comecei no futebol da Oliveirense. Fui apanha-bolas no Carlos Osório e, mais tarde, trabalhei no bar do Municipal de Aveiro, quando nos mudámos temporariamente para lá. De duas em duas semanas, lá ia eu.” Entre subidas e descidas, memórias felizes e dores de crescimento, chega ao fim do Ensino Secundário com vontade de entrar diretamente para o mercado de trabalho: “Queria arranjar logo um emprego, não planeava ir para a faculdade”. A chegada de Rui Lopes à direção do basquetebol da Oliveirense apressou a vida adulta, e a oportunidade não demorou a surgir: “é uma pessoa que me diz muito, conheço-o há muitos anos. Fizeram-me o convite para ser técnico de equipamentos da equipa sénior. Pensei durante algum tempo, mas acabei por aceitar. Lembrava-me do Sr. Zé, que era o roupeiro do futebol, e sempre foi uma função que admirei”. Aos 19 anos, vai na sua segunda época no basquetebol, e a proximidade à quadra já surte efeitos: “neste momento gosto de aqui estar e não planeio mudar de modalidade. Mas no futuro queria evoluir, e talvez pondere ir para a faculdade. Interessa-me gestão desportiva, gostava de ser Team Manager de uma equipa”. Partilha tudo isto connosco enquanto nos guia pelo seu reino, recheado de cruzetas, quadros com cábulas e fios de roupa que desenham um labirinto particular. “Há outras modalidades no pavilhão, e, quando o hóquei e a formação jogam antes, a organização é diferente. Deixo tudo pronto na minha arrecadação. Quando esses jogos acabam, começo a preparar o campo, e costumo colocar música nas colunas do pavilhão.”

Durante o aquecimento há rotinas a ter em conta. Washpun, por exemplo, chega mais cedo para lançar, e o seu equipamento é o primeiro a sair do balneário. Pablo Bertone segue também alguns rituais com o preparador físico da equipa, algo já previsto pelo Bernardo. No decorrer da partida, a preparação vale qualquer nervosismo, e os gestos – entre toalhas, camisolas e garrafas de água – desenrolam-se com naturalidade. Nos festejos dos dois últimos jogos frente ao SL Benfica, vemo-lo no meio de uma massa vermelha e azul, aprumada e vestida a rigor.

A época ainda dá os primeiros passos, mas a semana que passou foi especial. Ganhar dois jogos consecutivos ao campeão nacional não é um marco novo para a Oliveirense. A última vez que tal aconteceu foi em 18/19, em plena era dourada da turma de Oliveira de Azeméis. O Bernardo guarda as memórias desse período num panteão pessoal: entre duas subidas à segunda liga, no futebol, e as taças do hóquei, os dois títulos nacionais do basquetebol são só o início do que espera viver, agora em cima do palco. O futuro passa, por isso, “por mais investimento numa modalidade que tem dado frutos”.

De preferência, quanto a nós, recheada de paixões como a sua.

“Quando me virem calada a ver um jogo, ou é porque estou doente ou é porque estou em casa”. Mal se cruzam, o Bernardo e a Fernanda começam a comentar os dois jogos de Lisboa. A entrevista fica em segundo plano, enquanto à nossa frente floresce um amor incondicional pela modalidade. Tentamos acompanhar a conversa, apontando tudo aquilo que ouvimos, pedindo às vezes que se repita alguma coisa. O nosso alarme apita quando alguém fala de um avião. Questionamos. “Sim, sim”, responde-nos a Fernanda, “para a semana vamos só mulheres, um grupo nosso, ver o jogo com o Imortal. Partimos de manhã e estamos de volta à noite.” Estes planos não são coisa nova, e numa casa Oliveirense todos percebem: “toda a gente fala de basket, claro que percebem”.

À semelhança do que aconteceu com o Bernardo, a ligação à Oliveirense dá-se pela porta do futebol, na altura em que namorava.  Mais tarde, o filho entra para os escalões de formação do basquetebol, momento a partir do qual também passa a seguir a equipa sénior. “Estava naquela final contra a PT, em que perdemos no quinto jogo. Desde aí estive sempre presente. Fiquei muito desiludida quando decidiram acabar com a equipa sénior, em 2006, mas o recomeço, chegar até aqui, foi qualquer coisa. Lembro-me até do último cesto antes desse fim. Lances livres do João Abreu.” Na época 2009/10, um grupo de amigos decide reerguer os seniores da Oliveirense. Logo nessa temporada, o emblema consegue subir de divisão, da CNB2 para a CNB1, seguindo-se nova promoção, desta vez para a Proliga. Em 2013/14, cumpria-se finalmente o tão desejado regresso à primeira divisão.

“Eu gosto de basket, mas gosto sobretudo do basket da Oliveirense, o que faz toda a diferença. E não só quando ganhamos. Isso é uma coisa que se aprende com os miúdos da formação. O importante é estar cá.” Quando a questionamos sobre a última semana em Lisboa, diz-nos “que não percebe porque é que as pessoas ficaram tão espantadas. Quer dizer, não é que não tenha ficado, mas quem conhece o basquetebol da Oliveirense sabe que somos assim. Nota-se que a maior parte dos jogadores sente a mística da terra e do clube. Oliveira é terra de basquetebol, e a empatia entre atletas e adeptos reflete-se dentro de campo. Ainda agora, na noite branca, estavam lá todos a conversar com as pessoas. É essa garra que faz com que as coisas funcionem. Muitos deles nunca esquecem a passagem pela Oliveirense.”

À medida que circulamos em direção às bancadas, o barulho do treino do minibasquete intensifica-se. No campo, enquanto continuamos a conversa com a Fernanda, as próximas gerações da Oliveirense são preparadas ao pormenor. Só paramos no seu “lugar cativo”, cadeira em que se senta sempre e que até já tem o seu nome. “Isto foi uma brincadeira de um programa de televisão, sobre amor. Em vez de abordar uma relação entre duas pessoas, queriam algo diferente, e acabaram por falar comigo. Não gostei de participar só por mim. Não é um jogador que faz uma equipa, nem é uma pessoa que faz uma claque. Às vezes há uma pessoa mais interventiva, que acaba por incentivar os outros, mas é um todo. É uma cidade, é um pavilhão cheio. Eu não me calo. A minha filha é oficial de mesa em Lisboa, e como chateio muito os árbitros ela depois ouve [risos].”

“O campeonato no Porto foi um dos dias mais felizes da minha vida”. Era um objetivo que perseguíamos há muito tempo. Claro que o segundo também foi especial, mas esse foi o primeiro”. O que distingue o basquetebol do futebol, partilha connosco, é a sua imprevisibilidade, as mudanças sucessivas no marcador de jogada para jogada. Num campeonato em que os chamados três grandes aumentam de ano para ano o seu orçamento, o contexto desportivo nas duas modalidades vai-se tornando cada vez mais parecido. É preciso, assim, “haver maior investimento a nível de patrocinadores. Nós somos conhecidos pelo basquetebol, pela envolvência que criamos, e isso tem de ser um incentivo.”

Esta semana há um avião para apanhar, mas o aeroporto não é uma paragem nova para este grupo de amigas. Durante a pandemia, a Liga Betclic testemunhou duas realidades distintas. No continente, dado o maior número de infeções por COVID-19, os jogos foram sendo disputados à porta fechada: “Estivemos um ano inteiro sem ir ao pavilhão. Nos Açores já havia público, estava tudo mais calmo por lá. Então decidimos ir 10 mulheres ver o jogo contra o Lusitânia e apanhar um avião num aeroporto de Lisboa completamente deserto. Os jogadores já suspeitavam que íamos, mas perdemos. A minha vontade era bater em todos [risos], depois da viagem que fizemos.”

“Também me lembro de um fim-de-semana em Sines. Fomos cinco mulheres num carro. Tínhamos acabado de perder por 30 com o Sporting para o campeonato, e agora íamos voltar a encontrá-los para a Taça Hugo dos Santos. Pegámos no saquinho e lá fomos nós. Durante a viagem, eu já queria alugar um quarto para ficarmos para a final, porque sabia que íamos ganhar. Ao intervalo, enquanto já íamos na frente, eu perguntei: “meninas, já posso alugar o quarto?” Fizeram-me esperar pelo fim do jogo, mas lá passámos à final, que acabámos mesmo por vencer frente ao Benfica”.

Apesar do grande arranque, a época 23/24 é de renovação na Oliveirense. Depois de um período dourado, o emblema foi vendo sair algumas das suas maiores referências, como os norte-americanos Travante Williams e James Ellisor. Mais tarde, por diferentes motivos, nomes como João Balseiro ou João Guerreiro acabariam também por dizer adeus ao clube. A temporada arrancou com apenas 4 permanências no plantel e muitas caras novas. Mas, a julgar pela última semana, o legado está em boas mãos, e a mística vai seguindo o seu percurso, graças a figuras como o Bernardo e a Fernanda. Há ainda muitos rituais por cumprir e inúmeros aviões por apanhar. O futuro é promissor e cresce à sombra de uma Oliveira.

 

Escrito por: Francisco Silva